Capítulo 1 - Deserto de Guriangh [Parte 1]O vento do deserto açoitava a face e o corpo do Arkon Bürier. A capa negra se agitava, alongando a sombra que o imponente guerreiro deixava para trás de si na areia. Uma bainha adornada em prata pendia em sua cintura, ficando a menos de trinta centímetros do chão. Suas roupas eram, no mínimo incomuns para aquele calor infernal.
O par de coturnos sobrepujavam o caminho com facilidade em meio ao frenesi dos passos que seguiam sempre em frente, em direção ao oeste. Uma calça de um tecido grosso e resistente impedia que qualquer grão de areia tocasse em suas pernas. A camiseta – única peça branca em todo o conjunto – mantinha-se quase justa ao corpo de formas definidas enquanto, sobre esta, um colete de couro tingido estava abotoado com botões de prata. As mãos do viajante estavam cobertas com luvas que deixavam apenas os dedos a mostra e seu rosto mantinha-se oculto por um capuz proveniente da capa. Em contraste com sua pele clara, todo seu traje era negro, como se fosse a morte.
Para alguns, ele era a morte.
Aquele não era um deserto comum. Seu nome era Guriangh, que no idioma original significa interminável. Era compreensível porque os humanos, tolos, frágeis e de vida curta haviam o nomeado daquela maneira: ele realmente parecia não ter fim.
Isso faria qualquer um imaginar que era um local inóspito, desprovido de vida e de alegria. Isso não era exatamente a verdade. A verdade era que havia duas nações dos homens naquele local e, devido ao número relativamente grande de oásis, era possível que as cidades se desenvolvessem e os humanos fizessem o que melhor sabiam fazer: se multiplicar.
O Arkon Bürier enfrentava aquele território desagradável há quase duas semanas, mas suas pistas pareciam ser concretas desta vez. Caso contrário, ele não estaria enfrentando a tempestade de areia com tanto ardor como fazia. O vento era forte o suficiente para derrubar qualquer pessoa que tentasse se manter em pé contra ele. Porém, aquele que estava ali não era qualquer pessoa e ele poderia utilizar magia para fazer frente a ventania. No entanto, como que em tom de auto-desafio, ele resolveu que o faria apenas com sua força física.
Apesar de conseguir esta proeza com êxito e de a areia não o ferir graças as roupas que usava – estas sim possuíam um encantamento que as mantinha com uma resistência muitas vezes ampliada –, algo o irritava muito. Normalmente alguém como ele era capaz de sobrepujar qualquer distância quase na mesma velocidade que alguém montado em um cavalo. Porém, com uma tempestade daquela magnitude, o rapaz seguia na lenta velocidade de qualquer individuo comum. Isto o deixava irado.
Nos últimos três dias o Arkon Bürier não havia se alimentado decentemente. Ele odiava ter que carregar qualquer coisa, por causa disso recusava-se a levar uma mochila com mantimentos. Tudo o que ele levava consigo em suas viagens, além de sua espada, ficava em pequenas bolsas acopladas ao cinturão de couro, que, assim como tudo o resto, era tingido de preto. Justamente por esse motivo, tudo o que ele comia deveria provir de sua própria caça. O grande problema é que, em Guriangh, o máximo que se poderia encontrar seriam lagartos magros e desnutridos. Isto também o deixava irado.
Na ansiedade de alcançar seu objetivo o mais rápido possível, ele não dormira na noite anterior. Ou seja, há quase dois dias e uma noite ele caminhava – ou corria, em muitas ocasiões – sem parar. Para sua resistência física isto sequer chegava a ser um teste de verdade. No entanto, o que ele fazia era extremamente repetitivo e, portanto, tedioso. E isto também o deixava irado.
Por todos estes motivos, assim que o misterioso viajante chegou a pequena estalagem de nome Muroni, seu humor certamente não era dos melhores.
O local parecia um casebre no meio do deserto. Pouco antes de chegar ao local, ele pôde notar o poço encravado na areia. Imaginou o quão fundo devia ter sido necessário escavar até encontrar a preciosa água.
Observou como era a construção antes de entrar. Percebeu que os espaços onde deveriam ficar as janelas estavam fechados por quadrados inteiriços de madeira; certamente um método para se precaver contra a tempestade de areia. As telhas eram, originalmente, vermelhas, por serem feitas de barro. No entanto, o tempo as deixou esbranquiçadas e, provavelmente, frágeis. As paredes foram construídas com pedras, que foram muito mal cortadas, o que deixava um acabamento extremamente rústico no local. A porta de madeira estava fechada e disponibilizava o nome do local em alto relevo.
Tocou a maçaneta de ferro e a girou de maneira lenta, confirmando que ela estava destrancada. Abriu-a e entrou no ambiente prestando muita atenção em todos os que o ocupavam. O vento forte e uma grande quantidade de areia invadiu o local, provocando um protesto involuntário da maior parte de seus frequentadores.
Todos viraram-se em direção a porta e fitaram o misterioso recém chegado. Era praticamente inacreditável o fato de que ele havia atravessado boa parte do deserto durante aquela furiosa tempestade.
Seus olhos passearam pelo ambiente de maneira rápida e minuciosa. Percebeu os dois homens que mantinham suas adagas ocultas para contra-atacarem qualquer ameaça que viesse acometer o local. Eles estavam em um canto mais próximo da porta, sentados em frente a uma mesa redonda e vazia. Um deles aparentava ter mais que quarenta anos e mantinha uma barba desgrenhada, que já ganhava alguns fios brancos. O outro era um rapaz de cabelos compridos e loiros, que deveria ter não mais que vinte e cinco anos.
Do outro lado, uma garota que acabara de entrar na adolescência ajudava uma senhora com quase sessenta anos a costurar um tapete de lã. A menina mantinha seus longos cabelos loiros presos em uma trança e usava um vestido simples na cor rosa. A velha, por sua vez, tinha os cabelos alvos presos em um coque acima da cabeça e usava seu vestido de algodão, que, na opinião do recém chegado, nunca havia sido lavado.
Dirigiu-se até o balcão de madeira de forma rápida e silenciosa. Sabia que as pessoas mantinham seus olhares sobre ele, mas decidiu ignorar. Sentou-se em um velho banco de madeira e apoiou os cotovelos sobre o balcão enquanto encarava o homem por detrás do mesmo.
O dono do local, como foi presumido pelo Arkon Bürier, era um sujeito baixo e musculoso, que seria confundido com um anão caso fosse uns quinze centímetros menor e tivesse uma barba ainda mais longa e cheia. Os olhos azuis do homem encaravam-no desde quando ele havia entrado no estabelecimento.
– Vai querer tomar alguma coisa? Depois de enfrentar esta tempestade, sua garganta deve estar seca – manteve sua curiosidade escondida e limitou-se a tratar o cliente em potencial com cortesia, já que não existiam muitos deles naquele local isolado.
Em um gesto sútil, o viajante lançou o capuz que escondia seu rosto para trás. Seus cabelos negros se agitaram com o movimento, tornando-se ainda mais rebeldes em sua cabeça. A face era jovial, dando-lhe a aparência de, no máximo, vinte e um anos. Sua boca era pequena, assim como o nariz, o que o deixava com um ar misterioso. Os olhos foram os que mais chamaram a atenção do homem atrás do balcão. Eles eram levemente mais alongados do que o da maioria das pessoas que ele costumava ver, com as pupilas em forma levemente elíptica no sentido vertical e, além disso, eram mais escuros do que a noite; inexpressivos; sérios e... amedrontadores.
– Warhi – respondeu ao dono da estalagem num quase sussurro.
– O que disse? – Perguntou, sem entender o que o outro havia pronunciado.
– Água, quero apenas água – desta vez ele utilizou o idioma comum para se comunicar.
Ainda com fortes suspeitas o homem pegou, de baixo do balcão, um copo. Após isso, dirigiu-se até uma das prateleiras que ficavam presas na parede às suas costas e tocou em um vasilhame de cerâmica.
– Quero que lave o copo antes – disse de forma arrogante.
– Isso lhe custará duas moedas de prata ao invés de uma. Água é valiosa por aqui – respondeu ao se virar e fitar o recém chegado com uma expressão séria, quase irritada.
O rapaz não respondeu, apenas levou a mão em direção ao cinturão e abriu dois botões prateados de uma das pequenas bolsas do lado direito. De lá, retirou três moedas de prata e colocou em cima do balcão enquanto tornava a fechar os botões.
O dono do estabelecimento despejou um pouco de água proveniente do pote de cerâmica no copo, girou-o algumas vezes e descartou o precioso liquido em grande vaso atrás do balcão. Em seguida, tornou a encher o copo e entregou-lhe ao recém chegado enquanto pegava duas das moedas de prata.
– Eu disse duas moedas.
Aceitar dinheiro a mais seria como aceitar esmolas e, apesar da situação ser precária, seu orgulho não permitiria que aceitasse qualquer coisa desse tipo.
Os lábios do Arkon Bürier se curvaram em um meio sorriso pouco antes dele tomar, avidamente, a água que havia comprado. O líquido umedeceu os lábios ressecados e deslizou garganta abaixo, aliviando o ardor da desidratação, mas não a sede.
– Mais um – disse ao depositar o copo sobre o balcão novamente.
O homem não fez objeções, ainda tinha bastante água e, assim que a tempestade passasse, poderia pegar mais um pouco do poço. Portanto, aquilo seria dinheiro fácil para ele. Pegou o copo e encheu-o novamente para, então devolvê-lo ao viajante, que o tomou na mesma velocidade de antes.
– Você tem alguma comida aí? – Perguntou ao devolver o copo novamente.
O dono do estabelecimento fitou o rapaz novamente, a seguir, respondeu a sua pergunta.
– Tenho, mas muito pouca. Pão, carne seca, milho, queijo e maçãs secas.
O Arkon Bürier pensou nas possibilidades por um instante. Suas opções poderiam não ser as mais agradáveis, mas teria que conviver com elas; afinal, eram melhores que os lagartos do deserto.
– Vou querer pão, queijo e as maçãs. Você tem vinho?
– Tenho, mas isto lhe custará...
Antes que o homem completasse o que queria dizer, o viajante já havia colocado em cima do balcão duas moeda de ouro, que ele tinha retirado de um pequeno bolso ao lado da que ficavam as de prata.
– Acho que isto será suficiente para me servir enquanto eu estiver aqui.
Os olhos do homem se fixaram nas moedas, aquilo era quatro vezes o que cobraria pela comida. Ele era totalmente contra aceitar dinheiro sem ter feito algo para merecê-lo, porém, aquela era uma soma muito grande – teria de vender vinte copos de água para consegui-la –, então, sua ganância foi mais forte que seu orgulho e ele a aceitou.
O dono da pequena estalagem sumiu atrás de uma porta de madeira que ficava na parede de mesmo material posterior ao balcão. Nesse meio tempo, os dois homens não tiraram os olhos de cima do recém chegado. Alguns minutos mais tarde e uma paciência ainda menor por parte do Arkon Bürier, o sujeito retornou com um prato, um jarro com o líquido arroxeado e um copo, tudo devidamente equilibrado em seus braços robustos. Colocou o objeto de cerâmica, que continha os devidos alimentos, no balcão, em frente ao seu cliente. A seguir, colou ao lado deste o copo e encheu-o com vinho.
Na opinião do viajante, o pão estava murcho, as maçãs secas demais e o vinho era de péssima qualidade – o que, de fato, era uma verdade. Única coisa que ele apreciara foi o queijo, que continha uma quantia considerável de sal. Apesar de atribuir uma nota muito baixa à alimentação presente, a fome era grande e ele começou a devorar tudo de maneira rápida e ansiosa.
Enquanto ele comia o homem atrás do balcão não se aguentava de curiosidade e começou a questioná-lo em diversos assuntos:
– De onde você vem, amigo?
– Famin, mas não sou seu amigo – respondeu de maneira grosseira.
O homem ficou sobressaltado com tamanha agressividade na resposta, porém, não desistiu:
– Sou Malron, filho de Moroni. E qual seu nome?
O Arkon Bürier não respondeu, apenas continuou se alimentando e limitou-se a olhar de maneira nada amigável. Assim que terminou sua refeição, porém, decidiu que talvez não fosse uma má ideia ser um pouco comunicativo:
– A que distância estamos de Antane? – Perguntou com objetividade.
– Entendo, acho que você apenas não gosta de conversar enquanto come e eu, bem, eu acho que falo um pouco demais as vezes. Se você está indo para Antane, sinta-se feliz, pois acaba de chegar nela.
– Não vejo cidade alguma por aqui – disse de forma sarcástica.
– Certo... Digamos que ela realmente começa daqui há uns três passários1. Mas minha hospedaria fica dentro dos limites da cidade. Na verdade, ela é a primeira construção que uma pessoa vê se vier do leste.
Ignorou as últimas palavras que Malron havia lhe dirigido e, assim que tomou o último gole de seu vinho, levantou-se do banco onde se sentava e dirigiu-se ao canto direito do estabelecimento, o oposto ao que ficava a mesa dos dois homens armados. Ali ele se envolveu na própria capa e se sentou, apoiando os braços nos joelhos. Ele estava realmente ansioso para alcançar a cidade, mas, como descobrira que ela estava próxima, não se apressaria mais e aguardaria até que a tempestade passasse.
Apesar de relutante, o Arkon Bürier acabou cedendo ao cansaço e a segurança do local e adormeceu. Era um sono leve, do qual ele poderia acordar com o menor ruído. No entanto, foi suficiente para que ele sonhasse.
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